segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Impressionismo no feminino - Mestras da Luz


 
 
Impressionismo no feminino - Mestras da Luz
 
Mestras da Luz é o título de uma antologia de contos sobre quatro pintoras impressionistas, conhecidas e apreciadas pelos seus pares e pela crítica na época do impressionismo em França, mas desconhecidas do grande público de hoje. Este desconhecimento deve-se ao silêncio dos historiadores de arte em relação ao legado impressionista deixado pelo "segundo sexo". Simone de Beauvoir teria com certeza rejubilado com esta exposição, pensada e organizada pela curadora Ingrid Pfeiffer, para dar justa visibilidade às pintoras da época impressionista - Impressionistinnen, o título da exposição em alemão, distingue o feminino do masculino, ao contrário do que acontece em português, em que a palavra "impressionista", como substantivo ou como adjectivo, é a mesma para os dois géneros, daí a opção pelo título Impressionismo no feminino.
 
"Damos com esta exposição às pintoras o lugar que lhes pertence", afirma lapidarmente a curadora em entrevista à jornalista Anke Manigold. Após ter organizado exposições monográficas de pintores (Henri Matisse, Yves Klein, James Ensor), Ingrid Pfeiffer escolheu estas quatro pintoras impressionistas que a fascinaram com os seus estilos próprios e histórias de sucesso / insucesso todas elas diferentes. Elas pintaram sobretudo interiores, jardins e naturezas-mortas, pelo facto de estarem circunscritas ao mundo doméstico mas, como mulheres cultas que eram, muitas vezes o ultrapassaram nos seus quadros. Não puderam estudar em academias, como os seus colegas pintores, mas tiveram professores particulares (a Académie Julian oferece aulas para mulheres a partir de 1868). As famílias reagem de modo muito diverso à actividade artística destas pintoras, e esse é o tema comum aos quatro contos. A exposição mostrou 150 telas de 11 países e de museus de Nova Iorque, Londres, Viena e Washington, D.C., e de colecções privadas, e pôde ser vista na Schirn Kunsthalle de Frankfurt, de Fevereiro a Junho de 2008, e no Museu de Belas-Artes de S. Francisco, de Junho a Setembro de 2008.
 
 
A mulher foi desde sempre representada nos quadros dos pintores, e os impressionistas pintam-na em muitas variações, desde as bailarinas de Dégas e as banhistas de Cézanne, até às belezas exóticas de Gauguin. Impressionistinnen é dedicada à mulher impressionista, não como objecto / tema dos pintores, mas como pintora ela própria. A curadora Ingrid Pfeiffer afirma que a história de arte tem sido escrita até hoje por uma geração de críticos "antiquados", já que não incluem nas suas monografias e publicações sobre arte nomes de pintoras, ou apenas os mencionam muito à margem. A curadora afirma que o impressionismo é feminino e espera que exposições de pintoras passem a ser uma normalidade óbvia, em vez de algo tido como exótico e estranho. Estas pintoras foram pioneiras numa época que não conhecia ainda a igualdade de direitos dos dois géneros nem o direito das mulheres ao voto. Elas tiveram de lutar contra muitas dificuldades e preconceitos e representam muitas outras pintoras, cujas obras aguardam ainda hoje nos depósitos de museus e em colecções privadas o justo redescobrimento.
 
 
No prefácio a Mestras da Luz, que passarei a resumir, Ingrid Pfeiffer salienta que a segunda metade do séc. XIX tem uma importância decisiva para a emancipação feminina, pois pela primeira vez na História mulheres oriundas da burguesia exerceram profissões fora da família, por sua escolha própria. A biografia destas pintoras é exemplar dos destinos de muitas artistas da modernidade, e com elas não é só história de arte que se escreve, mas também história social. Paris atraía então artistas de todo o mundo e também dos Estados Unidos da América, dos quais um terço era constituído por mulheres. A estas mulheres artistas estavam vedados, no entanto, muitos espaços do quotidiano fora da esfera doméstica, por exemplo os cafés e a Academia das Belas-Artes, que só abre para elas a partir de 1897. Restava o Louvre, onde podiam conviver com os seus colegas pintores. O Salão permitia que pintoras expusessem, desde que o Júri assim o determinasse, mas prémios, medalhas e distinções eram atribuídas na grande generalidade aos pintores.
 
 
As quatro pintoras apresentadas nesta exposição e antologia possuem não só um estilo e assinatura artística individual própria, mas quatro histórias e destinos que representam a mulher no séc. XIX: Mary Cassatt, a pintora americana que viveu e criou em Paris, escolhe não casar para poder dedicar-se inteiramente à pintura; Eva Gonzalès morre de parto, com apenas 34 anos de idade, após o nascimento do primeiro filho; Marie Bracquemond acaba por abandonar a pintura, depois de longa insistência do seu marido autoritário, que a vê como concorrente e a pressiona, até ela desistir de pintar para assim garantir a paz doméstica. Das quatro, foi Berthe Morisot a única que pôde desfrutar do casamento como relação tranquila, pois o marido, irmão de Manet, sempre a apoiou na sua evolução como artista.
 
Cada uma destas pintoras desenvolveu um estilo próprio, diferente do estilo dos colegas impressionistas, tão moderno e inconfundível como o deles. Morisot foi considerada na época como "a mais impressionista dos impressionistas", os críticos admiravam o estilo poderoso e "masculino" de Cassatt e a representação não-sentimental de mães e filhos nas suas telas, Gonzalès era tida como pupila talentosa de Manet e excelente aguarelista, e Bracquemond era considerada como uma das grandes damas do impressionismo. A curadora Ingrid Pfeiffer atribui o desconhecimento dos nomes destas pintoras na história de arte do séc. XX ao facto de essa história ter sido escrita e inventada maioritariamente por homens, não sendo assim garantida qualquer objectividade e verdade na apreciação dos críticos. Só a partir dos anos de 1980 começou a iluminar-se a história da produção artística das mulheres, sujeita a condições tão especiais.
 
 
Quatro autoras, duas alemãs, uma francesa e uma holandesa, escrevem agora sobre estas pintoras: Alissa Walser (Berthe Morisot), Diane Broeckhoven (Mary Cassatt), Noelle Châtelet (Eva Gonzalès) e Annette Pehnt (Marie Bracquemond). Fazem-no de modo especialmente sensível, mostrando como estas mulheres ainda nos estão tão próximas nas suas dificuldades e nas suas aspirações. Walser mostra-nos a jovem Berthe Morisot, amiga e ocasionalmente modelo de Édouard Manet, quando o seu destino está em aberto, e ela não sabe ainda que virá a casar com um irmão de Manet, Eugène, que não a forçará a escolher entre arte e vida. Broeckhoven descreve-nos as horas nocturnas em que Mary Cassatt, com muita idade, fica suspensa entre a vida e a morte. O conto de Châtelet gira à volta do vestido de noiva de Eva Gonzàles, que a pintora quer pintar no corpo da sua irmã, Jeanne, que virá a casar com o marido de Eva após a sua morte, e a criar o seu filho. Pehnt faz-nos testemunhar na sua narrativa como Marie Bracquemond é gradualmente forçada por um marido mesquinho e dominador a abandonar a pintura.
 
 
O começo de uma vida de pintora, instantes de suspensão entre a vida e a morte, uma premonição que se vai formando, cambiantes de mudança nos quais se decide uma vida de artista - as quatro escritoras uniram-se num tema comum, fazer o retrato de uma pintora impressionista, e dão-nos narrativas que recriam na literatura o estilo impressionista da pintura, esboçando quadros do quotidiano destas pintoras, e criando simultaneamente verdadeiros instantes de vida como transição, também eles iluminados pelo talento das escritoras - elas também, como o objecto que retratam, Mestras da Luz.
 
Alissa Walser, Annette Pehnt, Diane Broeckhoven, Noelle Châtelet, Meisterinnen des Lichts. Ed. por Ingrid Pfeiffer. Ostfildern: Hatje Cantz Verlag, 2008.
 

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