segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Polifonia em 'Parábola del Palacio' de Jorge Luis Borges III


 




Polifonia em 'Parábola del Palacio' de Jorge Luis Borges III

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        Ler a 'Parábola del Palacio', breve texto publicado em 1960 no livro central de Borges El Hacedor, traz necessariamente à memória dois outros textos mais antigos, de autores bem conhecidos de Borges, o primeiro de Franz Kafka, a parábola 'Eine kaiserliche Botschaft', publicada em 1919 na narrativa Beim Bau der chinesischen Mauer, o segundo de Marguerite Yourcenar, a novela inaugural das suas Nouvelles Orientales, 'Comment Wang-Fô fut sauvé', de 1938.

        A intertextualidade com Kafka não é uma surpresa, já que Borges traduzira em 1938 nove contos de Kafka para espanhol, incluindo Beim Bau der chinesischen Mauer. Este conto de Kafka era o seu preferido, e contém o gérmen do que viria a ser o essencial da obra de Borges, sendo 'A Lotaria de Babilónia', 'As Ruínas Circulares' e 'A Biblioteca de Babel' aqueles textos em que a influência de Kafka é mais nítida.[1]Quanto ao segundo texto, é igualmente conhecido o interesse de Marguerite Yourcenar por Borges, a quem dedica em 1989 um belíssimo estudo intitulado 'Borges ou le Voyant', na colectânea de ensaios En pélerin et étranger. Os dois escritores conheciam-se pessoalmente e terão conversado em várias ocasiões. Une-os sobretudo uma concepção de literatura baseada no sonho, evidente no ensaio de Yourcenar, no qual louva a arte do texto de Borges, no qual “tout s’échange et devient autrement la même chose”.[2]A parábola de Kafka parte, para além de muitos outros escritos sobre o Oriente, de que era conhecedor, de um poema de Hugo von Hofmannsthal, 'Der Kaiser von China spricht', de 1897. O conto de Marguerite Yourcenar baseia-se, segundo a própria autora, num apólogo taoísta lido em 1936 na Revue de Paris.[3]Assim, a corrente originada na sequência destes textos, além de possuir implicações intertextuais que tentarei deslindar, é à partida uma ilustração da construção de literatura em Borges como escrita realizada ao longo dos tempos através de vários escritores, tal como a descreve no conto 'El Inmortal', de 1949.

        Tendo como personagens principais figuras míticas de imperadores orientais e figuras de artistas – um “tu” que sonha a mensagem do imperador em Kafka, o pintor Wang-Fô em Yourcenar, e o poeta em Borges, o tema dos três contos é o poder do imperador, que é absoluto, excepto pelo contrapoder do artista, que lhe equivale ou o ultrapassa. São textos sobre a comunicação estética, o poder da arte e a criação poética. A 'Parábola del Palacio' é composta por duas partes, a primeira a descrição que o Imperador Amarelo (o mais antigo e mítico Imperador da China, a quem é atribuído o Taoísmo) faz ao Poeta dos labirínticos domínios do seu palácio imperial. A segunda relata como o poeta, chegados à torre do palácio, recita uma breve composição que faz desaparecer o palácio. A parábola termina sem lição moral, num tom desiludido e desencantado em relação ao poder de representação da arte.

        Não é a primeira vez que Borges escreve sobre este tema. Em 1952, no volume Otras Inquisiciones, trata o tema do Imperador e do Poeta no texto 'El Sueño de Coleridge'. Aqui Borges relata a experiência onírica que, segundo o próprio Coleridge, o terá inspirado a escrever o poema 'Kubla Khan'. Borges traça o paralelo com o sonho do imperador mongol que dá o nome ao poema e que, cinco séculos antes, sonhara um palácio e o edificara segundo essa visão: “Un imperador mongol, en el siglo XIII, sueña un palacio y lo edifica conforme a la visión; en el siglo XVIII, un poeta inglés que no pudo saber que esa fábrica se derivó de un sueño, sueña un poema sobre el palacio.” [4]A explicação final para este paralelismo, a cinco séculos de distância é, segundo Borges, a seguinte: “Acaso un arquetipo no revelado aún a los hombres, un objeto eterno (...), esté ingresando paulatinamente en el mundo; su primera manifestación fue el palacio; la segunda el poema. Quien los hubiera comparado habría visto que eran esencialmente iguales.” [5]

        Ora a questão que se coloca é a seguinte: como é que o poeta e o imperador, que em 'El Sueño de Coleridge' são manifestações da universalidade do Espírito e do sentido ecuménico da Arte, se tornam em opostos inconciliáveis na 'Parábola del Palacio'? Esta é a questão que coloca este labirinto de textos. Em vez de sugerir uma saída do labirinto textual, vou propôr mais alguns fios para adensar o problema, à medida que tentamos resolver a charada. Embora Borges não refira Marguerite Yourcenar, conhecia sem dúvida o belo conto 'Comment Wang-Fô fut sauvé'. Nesse conto, os dois mundos do Imperador e do pintor Wang-Fô são opostos e inconciliáveis. A arte é ao mesmo tempo a condenação e a salvação do artista. Wang-Fô é condenado à morte pelo imperador, que acha os quadros do pintor demasiado belos, demasiado perfeitos, dando uma ideia errada do mundo e dos homens. Simultaneamente, nesse poder de transfiguração da realidade circundante, a arte salva Wang-Fô, que se evade do mundo da corte do imperador sem que ninguém possa detê-lo. Esta concepção de arte é ainda romântica e metafísica – o mundo do Imperador opõe-se irremediavelmente ao mundo da arte, que lhe é muito superior, e ao qual não tem qualquer capacidade de acesso, nem de apreensão do seu conteúdo, nem no final, para interferir na fuga de Wang-Fô e do seu discípulo. É certamente à luz desta antinomia romântica arte/vida que podemos compreender a mudança no texto de Borges desde a intrínseca similitude entre Imperador e Poeta de 'El Sueño de Coleridge', e a oposição irredutível entre os dois que encontramos na 'Parábola del Palacio'.

(a continuar)


[1] Cf. Margaret Boegeman, 'From Amhoretz to Exegete: The Swerve from Kafka by Borges', in: Jaime Alazraki, Critical Essays on Jorge Luis Borges. Boston, 1987, p. 173-5.
[2]Cf. Marguerite Yourcenar, 'Borges ou le Voyant', in: M. Y. , En pélerin et étranger, Paris, 1989.
[3] Cf. Revue de Paris, 43.4 (15 février 1936), p. 848-859.
[4]Cf. Jorge Luis Borges, Obras completas de Jorge Luis Borges. Buenos Aires: Emecê,1974, p. 644.
[5] Cf. id. ibid., p. 645.

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