segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

 






Nota sobre o ‘ler mal’, ou: preenchendo as lacunas do texto


(...)
        Mas o destino das “lacunas” na crítica literária viria a ser diferente. De facto, as lacunas do texto, bem como os passos de indeterminação, são considerados por Wolfgang Iser[1] uma condição para a recepção do texto e um factor importante para a sua acção. As lacunas não são, no entanto, na perspectiva de Iser, espaços em branco a preencher arbitrariamente pelo leitor, um espaço vazio para exercícios de leitura arbitrários. A estrutura do texto determina as lacunas a preencher e contém assim em si mesma um leitor implícito. Isto não quer dizer que nada mais reste para ler ao leitor de Iser[2], uma vez que a proposta mais importante do papel atribuído ao leitor no texto é descobrir[3]. Além disso, as lacunas são para Iser uma parte da estratégia comunicativa do texto, indispensável para o contacto estabelecido entre texto e leitor: não é possível comunicação sem intenção comunicativa.
        Em suma, poderia dizer-se que reivindicar os direitos do texto ou do leitor, traçando linhas que vão unilateralmente de um ao outro, defendendo a primazia de um dos dois, torna-se desnecessário quando a leitura e a recepção são vistas como inter-relação e processo, uma vez que nenhum dos dois elementos vale por si só: defender a liberdade e a criatividade do leitor sem texto não faz muito sentido – e o texto sem leitor não passa de uma materialidade de sinais à espera de descodificação. Alguns críticos querem defender a “obra em si mesma”- mas qual é, na fórmula de Ingarden, o modo de existência da obra literária? O problema, contido nas contradições internas de Ingarden, é resolvido em cambiantes diferentes por Wolfgang Iser[4] e Manfred Naumann[5]: o texto torna-se obra no processo de leitura e através da leitura.
        Os dois livros de Harold Bloom sobre o “ler mal” (“misreading”) devem ser compreendidos como reacção ao tecnicismo da crítica literária, e como tentativa humanista de salvar a literatura dos métodos “formalistas” que vêem o texto ou obra como um organismo fechado em si mesmo. Bloom cai no extremo oposto, escrevendo que “não há textos, mas apenas relações entre textos”[6]. O fundamento para a sua doutrina poética é a influência, ou as relações intrapoéticas, que cuidadosamente separa do “estudo das fontes”, da “história das ideias” ou da “estruturação das imagens”[7]. Na sua nostalgia por um método de abordagem humanista que se teria perdido na crítica literária, Bloom tende a negligenciar o texto e a concentrar-se nos dois participantes do processo, autor e leitor.
       Erros causados pelo biografismo, bem como a concepção essencialista de obra literária, tinham conduzido no passado à exclusão do autor e do leitor e à concentração exclusiva no texto no seu “estado de pureza”, de estrutura separada e independente, depois de escrito e antes de ser lido[8]. A obra é então considerada como estrutura de sinais, e não no processo que constitui o seu verdadeiro modo de existência próprio, nos dois momentos da sua humanização, como produto da actividade humana, ao ser escrita – e lida. Isolar o texto no seu “estado de pureza” pode corresponder a uma estratégia metodológica num dado momento da evolução da crítica literária, ou numa dada fase do estudo de um texto; mas conferir valor absoluto a uma fase de um processo, elaborando teorias que isolam o texto literário numa hipotética esfera própria como tendo um estatuto ontológico à parte, é em si mesmo um paradoxo. Isolar o texto num mundo próprio inacessível não garante a realização de todas as suas potencialidades e da totalidade dos seus valores, pelo contrário, faz disso uma impossibilidade. Toda a afirmação sobre o texto implica a sua apropriação por parte do leitor e a sua reintegração na realidade; o que os diferentes “formalismos” fazem é cortar os diversos laços passados e futuros que ligam o texto à realidade e encerrá-lo na sua “prisão”, mas ao fazê-lo apenas estão, de facto, a integrá-lo negativamente na realidade.

(a continuar)

[1] ISER, Wolfgang, Die Appellstruktur der Texte. Unbestimmtheit als Wirkungsbedingung literarischer Texte. Konstanz, 1970.
[2] Cf. BARNOUW, Dagmar, “Is there anything left to read for Iser’s reader?”, in: Proceedings of the IXth Congress of the ICLA, Innsbruck 1979, vol. II: Literary Communication and Reception, ed. Por Z. Konstantinovic, M. Naumann, H. R. Jauss. Innsbruck, 1980.
[3] Cf. ISER, Wolfgang, Der implizite Leser. Kommunikationsformen des Romans von Bunyan bis Beckett. München, 1972, p. 9.
[4] Cf. ISER, Wolfgang, Der Akt des Lesens. München, 1976, p. 39: „A obra é a constituição do texto na consciência do leitor” (“Das Werk ist das Konstituiertsein des Textes im Bewusstsein des Lesers”).
[5] Cf. NAUMANN, Manfred, “Werk und Literaturgeschichte”, in: Weimarer Beiträge, 1, 1982, p. 59: „só o texto lido, quer dizer o texto a que se deu significado e, portanto, valoração, é a verdadeira obra” (“erst der gelesene, das heisst der bedeutete und damit bewertete Text ist das wirkliche Werk”).
[6] Cf. Map, p. 3: “there are no texts, but only relationships between texts.”
[7] Cf. Anxiety, p. 7.
[8] Cf., por exemplo, KAYSER, Wolfgang, Das sprachliche Kunstwerk. Bern e München, 51959, p. 138: „A obra de arte literária vive como tal e em si mesma” (“Das sprachliche Kunstwerk lebt als solches und in sich“).
 
 
 

Retomo hoje aqui um post de 19 de Novembro de 2011 do meu blogue Comparatista e Detective.

Sem comentários:

Enviar um comentário