segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Polifonia em 'Parábola del Palacio' de Jorge Luis Borges IV





Polifonia em 'Parábola del Palacio' de Jorge Luis Borges IV

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        De natureza mais similar é a relação entre o texto de Borges e a parábola de Kafka "Eine kaiserliche Botschaft". Esta parábola tem sido interpretada de muitas maneiras diferentes, e dela se poderia afirmar o mesmo que Deleuze/Guattari afirmam da obra de Kafka em geral, respondendo à pergunta:“How can we enter into Kafka’s work? This work is a rhizome, a burrow.”[1]A razão pela qual é possível interpretar a obra de Kafka de tantas maneiras diferentes, é a principal característica desta obra, que os dois autores resumem deste modo: “Only the principle of multiple entrances prevents the introduction of the enemy, the Signifier and those attempts to interpret a work that is actually open to experimentation.” [2]A definição de facto estético como “inminencia de una revelación, que no se produce” [3], é o principal elemento que Borges herdou de Kafka, tal como o encontramos em "Eine kaiserliche Botschaft". O Imperador moribundo (a velha ordem, a autoridade, a concepção essencialista de texto) envia pelo seu poderoso mensageiro uma mensagem que nunca chega ao súbdito, ao“tu” distante do Sol imperial. A mensagem chega apenas através do sonho, da imaginação, acentuando assim a liberdade da leitura e a ambiguidade do texto e da mensagem. Kafka e Borges, pertencendo embora à Modernidade, antecipam teses fundamentais das Teorias do texto do séc. XX e da Pós-Modernidade.
 
 
        Resta a nostalgia da“palavra do Universo”, a que o ser humano não tem acesso. Só Deus poderia entender essa palavra e a sua infinita polifonia. Só a memória de Deus poderia ser infinita e eterna. A memória humana, conservada nas instituições da Literatura e da Biblioteca, não é eterna nem infinita. Repetidamente Boeges exprime a nostalgia pela metafísica perdida, e o desejo de totalidade, de ordem no universo. Em "Parábola del Palacio", isso traduz-se na ficção da recriação do mundo pelo poeta numa composição poderosa, constituída por uma só palavra, a palavra do universo: “Al pie de la penúltima torre fue que el poeta (que estaba como ajeno a los espectáculos que eran maravilla de todos) recitó la breve composición que hoy vinculamos indisolublemente a su nombre (...) El texto se ha perdido; hay quien entiende que constaba de un verso; otros, de una sola palabra.” [4]
 
 
        Este texto improbable gozaria das virtudes da representação conseguida e perfeita: “Lo cierto, lo incredible, es que en el poema estaba entero y minucioso el palacio enorme, com cada ilustre porcelana y cada dibujo en cada porcelana y las penumbras y las luces de los crepusculos y cada instante desdichado o feliz de las gloriosas dinastías de mortals, de dioses y de dragones que habitaron en el desde el interminable pasado.” [5] Aqui temos mais um exemplo de enumeração em Borges para reproduzir a realidade, neste caso o palácio do Imperador. Na verdade, o palácio é uma metáfora para os ditames da realidade exterior e da representação estética. O exemplo mais conhecido na obra de Borges de tentativa de dar a realidade em toda a sua multiplicidade e complexidade é o Aleph. Mas Borges conhece bem as limitações dos possíveis prismas artísticos, dos vários Alephs, sejam eles simulacros ou verdadeiros. Se o universo for infinito, a ideia de totalidade na arte (a representação conseguida na “palavra do universo”), ou na enumeração, não faz o menor sentido, pois será sempre incompleta, parcial; em segundo lugar, da ausência de tempo, de História, de perspectiva linear, causal, resulta a incapacidade de ordenar, de perspectivar. A enumeração apenas reproduz a desordem da realidade, e a representação em arte (mimésis) é impossível. Mas como se continua a pensar arte em termos de representação, todo o espelho se torna para o artista um verdadeiro pesadelo.[6]
 
 
        Ao mesmo tempo, subsiste uma imensa nostalgia da coincidência e harmonia dos dois universos, da arte e da realidade, e da possibilidade de a arte dizer, nomear a realidade. Esse é o“facto estético” que Borges herda de Kafka, para quem tudo é ainda representação. A realidade é sonho para Kafka, o sonho traz a realidade, a realidade é ainda representável. Embora a realidade – a mensagem imperial –seja inalcançável para Kafka, aquilo que nos é dado sempre é o plano do sonho, da arte, da representação. Borges tem em comum com Kafka a visão lúcida e céptica perante uma realidade social que só pode alcançar-se pela ironia. Nessa visão crítica da sociedade, são semelhantes. Mas para Kafka a arte tem ainda o poder de representação, ainda é habitável. Para Borges, é inalcançável, é infindável, o segredo que o mensageiro transporta não chega nunca, fica sempre aquém da existência humana. Para Borges, a arte não é representação do real. A realidade é dura demais e a arte situa-se noutro plano, não cria nem muda a realidade, como em Yourcenar. Em vez disso, chama a atenção para os limites do humano, para a tragédia da condição humana – a realidade sociológica e ontológica, impiedosa e imperante, impõe-se, tal como vemos no final de "Parábola del Palacio". Nesta sua visão céptica do poder redentor do verbo poético e do seu poder de representação, Borges aproxima-se do pensamento estético vienense do séc. XIX, que escolhe o silêncio como condenação da palavra poética, por não ser capaz de exprimir a realidade.
 
 
        Ao mesmo tempo que aspira à revelação metafísica e à totalidade, Borges mostra verdadeiro terror do infinito, como mostra a personagem Funes el Memorioso, o homem que não consegue esquecer.[7] Aqui fala da recordação como “Lo recuerdo (yo no tengo derecho a pronunciar esse verbo sagrado, sólo un hombre en la tierra tuvo derecho y esse hombre há muerto)”.[8] Tal como no poema "Everness", só Deus conserva tudo na sua “profética memoria”.[9] Em "La Biblioteca de Babel", de Ficciones (1944), distancia-se claramente dessa verdade contida na mensagem metafísica: “la Biblioteca incluye todas las estructuras verbales, todas las variaciones que permitem los veinticinco símbolos ortográficos, pero no un solo disparate absoluto.” [10]A única ordem possível é a desordem “que, repetido, sería un ordem, el Orden”.Este é o único lenitivo para a saudade da metafísica perdida: “Mi soledad se alegra com esa elegante esperanza.”[11]Daí o elogio da forma curta e concisa, mas ao mesmo tempo a continuação da tentativa de enumeração paratáctica em várias descrições da realidade exterior na sua obra. Mesmo sem a capacidade para descrever a complexidade do real dada na hipotaxe, a parataxe corresponde mais ao rizoma na obra de Borges, à rede de relações que estabelece entre textos, sem contudo estabelecer uma hierarquia. O que aparece na obra de Borges é, assim, o próprio mundo dos livros e dos textos, a Biblioteca, que se substitui à realidade exterior, aliás com toda a nostalgia do mundo real como no poema "El Outro Tigre". Borges parte de universos literários e recria-os. Aceitando a não-totalidade, a não-solução dos enigmas, a não-revelação, ele acaba por continuar a colocar questões metafísicas, mesmo sem acreditar na metafísica. A aspiração romântica do poeta em "Parábola del Palacio" é recriar o universo pelo poder ideal da palavra. Esse ideal revela-se utópico. A realidade impõe-se na crueza dos seus limites: a morte e o esquecimento. A palavra do universo permanece como demanda sem fim, a arte é a arte do inacabado, do impossível.
 
 
        Para concluir, gostaria de situar estes dois textos de Borges e de Kafka no quadro de uma mudança de paradigma na transição da Modernidade para a Pós-Modernidade, mudança essa mais acentuada em Borges, mas manifestando-se já claramente em Kafka. Resumindo e esquematizando, às noções estáticas de Livro e Biblioteca correspondem as noções dinâmicas de Texto e Escrita. À Intersubjectividade das teorias essencialistas de Literatura correspondem a Intertextualidadedas modernas teorias textuais do séc. XX. A perspectiva monológicada estética da representação é substituída pelo dialogismo da estética pós-moderna e pela desconstrução. A noção de Tempo é substituída pela noção de Espaço, a Árvore de conhecimento hierárquica é substituída pelo conceito multirelacional de Rizoma. O Labirinto da Modernidade dá lugar à Rede, um labirinto sem saída única, i. e., sem metafísica. Finalmente, os conceitos aristotélicos de identidade, substância, causalidade e definição dão lugar aos conceitos de analogia, relação, oposição não-exclusiva, e portanto de dialogismo e ambivalência.[12]
 
 
        Na verdade, e muito embora os Imperadores e Poetas dos três textos analisados se oponham entre si e não criem uma relação de diálogo, a prática dos três autores, nomeadamente a de Borges, situa-se já claramente na Pós-Modernidade, pela sua relação dialógica, intertextual e dinâmica com outros textos, sem os quais o leitor não pode estabelecer toda a riqueza potencialmente contida nesta "Parábola del Palacio".
 
Ana Maria Delgado
Instituto Camões / Georgetown University
Obras citadas
Balderston, Daniel, Borges, realidades y simulacros.Buenos Aires: Biblos, 2000.
 
Belitt, Ben, “The enigmatic predicament: some parables of Kafka and Borges”. Tri-Quarterly 25, 1972, p. 268-291.
 
Bernstein, Leonard, Young People’s Concerts. (Videorecording): with the New York Philharmonic / CBS. West Long Branch, NJ: Kultur Video, 2004.
 
Blüher, K. H., “Postmodernidad e intertextualidad en la obra de Jorge Luis Borges”, in: Blüher, K. A. / de Toro, A. Jorge Luis Borges. Variaciones interpretativas sobre sus procedimientos literarios y bases epistemológicas. Frankfurt am Main: Vervuert Verlag, 1992.
 
Boegeman, Margaret, “From Amhoretz to Exegete: The Swerve from Kafka by Borges”, in: Alazraki, Jaime. Critical Essays on Jorge Luis Borges.Boston: G. K. Hall, 1987, p. 173-191.
 
Borges, Jorge Luis, Obras completas de Jorge Luis Borges. Buenos Aires: Emecê, 1974.
 
Deleuze, Gilles,Différence et répétition, Paris : PUF, 1968.
 
Deleuze, Gilles / Guattari, Felix, Kafka – toward a minor literature. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986.
 
Gilles Deleuze / Felix Guattari, “Rhizome”, in: A thousand plateaus: capitalism and schizophrenia.Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987.
 
Jameson, Fredric,“Post-modernism, or the cultural logic of late capitalism”. NLR, 146, July/August 1984.
 
Kafka, Franz, Beim Bau der chinesischen Mauer : Prosa und Betrachtungen aus dem Nachlass. Leipzig: Gustav Kiepenheuer, 1985.
 
Kennedy, Michael, Oxford dictionary of music. Oxford; New York: Oxford University Press, 2006.
 
Kristeva, Julia, “Word, Dialogue and Novel”, in: Toril Moi, The Kristeva reader. New York: Columbia University Press, 1986.
 
Lowes, John Livingston, The road to Xanadu: a study in the ways of the imagination. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1986.
 
Nünning, Ansgar, Metzler Lexikon der Literatur- und Kulturtheorie. Stuttgart; Weimar: Metzler, 1998.
 
Politzer, Heinz, “Zwei kaiserliche Botschaften. Zu den Texten von Hofmannsthal und Kafka”. Modern Austrian Literature, Volume 11, Number 3-4, 1978. p. 104-122.
 
Schlaffer, Heinz, Borges. Frankfurt am Main: Fischer, 1993.
 
Teyssot, Georges, “Specular relation”. Assemblage, Nº 20, 1993. p. 78-9.
 
Toro, Alfonso de, “Überlegungen zur Textsorte ‘Fantastik’ oder Borges und die Negation des Fantastischen: rhizomatische Simulation, ‘dirigierter Zufall’ und semiotisches Skandalon”. Schenkel / Schwarz / Stockinger / de Toro (ed.), Die magische Schreibmaschine. Aufsätze zur Tradition des Phantastischen in der Literatur. Frankfurt am Main: Vervuert Verlag, 1998.
 
Yourcenar, Marguerite.Borges ou le Voyant”, in: En pélerin et étranger. Paris: Gallimard, 1989.
 
-- Nouvelles Orientales. Paris : Gallimard, 1963.
 

[1]Cf. Gilles Deleuze/Felix Guattari, Kafka– Toward a Minor Literature, Minnesota, 1986, p. 3.
[2] Cf. id. ibid.
[3] Cf. Other Inquisitions, (1950), in: J.L.B., Obras Completas, p. 635.
[4]Cf. p. 801.
[5]Id. ibid.
[6] Cf. o poema "Los Espejos", em El Hacedor, p. 814-5.
[7] EmArtificios, 1944, talvez uma variação da personagem de Hitchcock Mr. Memory, no filme The 39 Steps.
[8] Cf. id. ibid., p. 485.
[9] Cf. El Otro, El Mismo, 1964, p. 927.
[10] Cf. p. 470.
[11] Cf. p. 471.
[12] Cf. Julia Kristeva, op. cit., passim.

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