segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014


 


Nota sobre o ‘ler mal’, ou: preenchendo as lacunas do texto


(...)
 
        À relação da obra com a realidade fora durante muito tempo dada uma ênfase exagerada por modos de abordagem mecanicistas, excluindo totalmente o leitor e atribuindo à obra literária um estatuto de realidade no segundo grau como reflexo. As modernas teorias do texto reagiram fortemente contra este ponto de vista; a sua atenção não se focou no movimento centrípeto de ficcionalização, mas antes no movimento centrífugo que acontece no processo de leitura. O olhar crítico não seguia o processo de escrita detendo-se no texto; ele começava onde outras abordagens se tinham detido e tentava seguir as diversas integrações do texto na realidade através dos leitores. O mais antigo problema da estética – a relação ficção-realidade – estava de novo a ser focado, mas desta vez pelo lado oposto: a realidade a considerar já não era a realidade reflectida no texto, mas sim a realidade gerada pelo próprio texto através do leitor. Não o texto como reflexo de uma realidade pré-existente, mas sim o texto como potencial acção na realidade. O processo de transformação do texto em realidade está sempre ligado à função geradora de sentido do texto; o texto atinge a realidade através da sua potencialidade de produzir sentido. O leitor tem agora um papel activo decisivo: se o autor se exprime no texto, o leitor tem de encontrar outras maneiras de integrar o texto na realidade, mesmo que seja através de um segundo texto, como pode ser o caso do leitor directamente criativo ou do crítico literário. O que interessa agora é o regresso do leitor à realidade, libertando o texto literário do seu isolamento e alargando a noção de obra através da integração do texto na realidade. A inserção do texto no processo de recepção que o transforma em obra implicaria a longo prazo uma nova reflexão sobre os próprios conceitos de arte e vida – mas tecer considerações teóricas sem sabor utópico sobre esta questão é, pelo menos, impossível por agora. Seja como for, as modernas teorias do texto depressa se transformaram em teorias da comunicação literária, focando o seu interesse na história literária como um processo que engloba três elementos: autor, texto e leitor[1].
        O texto exprime sempre e de um modo ou outro denota uma necessidade de diálogo, possui aquilo a que Iser chamou “estrutura apelativa”. Mas a comunicação com o leitor não é directa, estabelece-se através do texto. É essa a razão pela qual o autor foi, a princípio, deixado de fora da reflexão teórica, uma vez que ele permanece presente no texto e comunica com o leitor através do texto – daí o desvio da tónica para o eixo de relação texto-leitor, texto-acção (“Wirkung”). O que também quer dizer que a perspectiva hermenêutica tradicional seria ingénua ao assumir que a comunicação se estabelece directamente entre autor e leitor através do acto de expressão, através da co-genialidade – e tendendo a ignorar a especificidade da comunicação literária, estabelecida através do texto.
        O conceito de “ler mal” (“misreading”) proposto por Harold Bloom como leitura antitética, tentando sondar “as profundidades da influência poética”[2], remonta às investigações de Freud sobre os mecanismos de defesa, atribuindo à protecção do organismo contra estímulos um papel quase maior do que à “recepção de estímulos”[3]. Bloom vê a qualidade de processo de leitura, mas como reacção; o diálogo entre poetas fortes é um diálogo negativo e todos os textos mostram, na sua formulação, uma ou outra espécie de ratio “revisionista”. É de duvidar que a redução da leitura ao “ler mal”, “misreading”, e da leitura criativa à leitura antitética, tenha contribuído para dar à crítica literária um carácter mais humanista. O acesso do leitor à criatividade através da leitura é certamente uma coisa maravilhosa, mas o apelo do texto à criatividade não deveria limitar-se à espécie de criatividade que, por seu turno, encontra expressão em textos literários – e Bloom não aponta uma saída para fora dos próprios poemas, sendo a crítica literária para ele “a arte de conhecer os caminhos escondidos que vão de um a outro poema”[4]. Seja como for, a teoria das relações intrapoéticas de Bloom exprime uma reacção contra o rigor teórico e o “close reading” do texto: na perspectiva de Bloom, o crítico pode de igual modo ser um artista: “Não há interpretações mas apenas más interpretações, e assim toda a crítica é poesia em prosa”[5]. Exigir maior subtileza ao crítico literário e maior exactidão ao escritor não significa que, nas palavras de Bloom, “à medida que a história literária se desenvolve, toda a poesia se torna necessariamente crítica em verso, tal como a crítica se torna poesia em prosa"[6]. Enriquecimento da leitura e da escrita, bem como da crítica no processo da sua evolução, não significa ausência de diferenciação, pelo contrário. E reduzir a uma leitura ideal o número de leituras possíveis – uma vez que elas são o resultado não só da estrutura do texto, mas mais da qualidade histórica da recepção – significaria dar um fim artificial à história dos textos e da sua acção ou efeito (“Wirkung”).
 

[1] Cf. JAUSS, Hans Robert, “Esthétique de la réception et communication littéraire”, in: Proceedings of the IXth Congress of the ICLA. Innsbruck 1979, vol. II, Literary Communication and Reception, ed. por Z. Konstantinovic, M. Naumann, H. R. Jauss. Innsbruck, 1980.
[2] Cf. Anxiety, p. 7.
[3] Cf. Map, p. 13: “’Protection against stimuli is an almost more important function for the living organism than reception of stimuli’ is a fine reminder in Beyond the Pleasure Principle, a book whose true subject is influence.”
[4] Cf. Anxiety, p. 96: “Criticism is the art of knowing the hidden roads that go from poem to poem”.
[5] Id. ibid., p. 95: “There are no interpretations but only misinterpretations, and so all criticism is prose poetry”.
[6] Cf. Map, p. 3: “As literary history lengthens, all poetry necessarily becomes verse-criticism, just as all criticism becomes prose-poetry”.
 
 
Retomo hoje aqui um post de 11 de Dezembro de 2011 do meu blogue Comparatista e Detective.
 

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