Nota sobre o ‘ler mal’, ou: preenchendo as lacunas do texto*
Nas suas obras The Anxiety of Influence [1] e A Map of Misreading[2], Harold Bloom propõe a categoria central de “misreading” – “ler mal” – para a compreensão da história da poesia, que não pode, a seu ver, distinguir-se da influência poética, “uma vez que os poetas fortes fazem essa história lendo-se mal uns aos outros” (p. 5). “Ler mal” aparece, na perspectiva de Bloom, no sentido positivo de “mal-entendido produtivo”. Poderia traçar-se a história do sugestivo termo proposto por Bloom: de facto, vários outros críticos usam expressões semelhantes para denotar leitura produtiva. Assim, Robert Escarpit fala de “’traição criativa’ como chave da literatura”[3] e, referindo-se a Julia Kristeva e ao seu conceito de entropia do discurso literário, toma a “predisposição da obra à traição” como um critério da sua especificidade literária[4]. As diferentes interpretações não significam, de igual modo, na perspectiva de Roland Barthes, uma tendência dos leitores para ‘errar’, mas antes uma “disposição da obra literária para a abertura”[5]. Umberto Eco também desenvolveu no seu já famoso livro Opera aperta[6] as noções de “obra aberta” e de “obra em movimento”. Para ele, a liberdade do texto – a sua abertura – deveria ser igual à liberdade do leitor. Concebendo a forma como um campo de possibilidades, Eco também atribui ao texto a razão das diferentes leituras, através da sua intenção de comunicar mais do que uma mensagem inequívoca.
A noção de “ler mal” como leitura produtiva parece, à primeira vista, ser o contrário do conceito clássico de “ler mal” tal como é desenvolvido na obra mais importante de Roman Ingarden[7]. Considerando, no entanto, os dois conceitos de “ler mal” mais de perto, chega-se a outra conclusão, pois definir a qualidade literária de uma obra como a sua predisposição à traição é o último passo na linha essencialista de Ingarden, uma vez que a noção de “traição criativa” pressupõe que a obra possui uma imanência de sentido, um significado fixo que pode ser traído.
Uma das maiores preocupações de Ingarden era defender a obra de leituras não-adequadas, de “mis-readings”. Por outro lado, tem-se desenhado entre os críticos literários uma tendência para sublinhar a criatividade do leitor, criticando o facto de o leitor ser levado pelo texto, com o argumento de que pouco restaria então ao leitor para ler. Os seguidores mais fiéis de Ingarden protestariam, por outro lado, contra o uso do texto como mero pre-texto por parte do leitor.
O centro da aparente contradição contida nestas posições está já presente na tentativa de Ingarden de definir o modo de existência da obra literária: Ingarden deixa de fora autor e leitor, mas escreve que a obra existe nas diferentes concretizações e através delas[8]. No seu receio de concretizações inadequadas, Ingarden preferiria ver lacunas e passos de indeterminação da obra preenchidos no acto da sua composição; se restam ainda espaços abertos no texto, caberá ao leitor completar a polifonia da obra, preenchendo as lacunas. O problema é, evidentemente, que se as diferentes concretizações não passam de um resultado da estrutura polifónica da obra, pouco mais restaria ao leitor do que o papel de eco ou espelho do texto. Exagerar, por outro lado, a função das lacunas e dos passos de indeterminação do texto, poderia levar a concepções idealistas de comunicação através de pura intuição, de transmissão de energia através do mero acto expressivo.
Mas o destino das “lacunas” na crítica literária viria a ser diferente.
(a continuar)
*O presente texto é a tradução da comunicação que apresentei ao X. Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada AILC/ICLA em Nova Iorque a 24 de Agosto de 1982, intitulada no original “A Note on Misreading, or: Filling the Author’s Gaps”, publicada nas Actas do Congresso, e a publicar a seu tempo também em língua inglesa aqui no Comparatista e Detective. Este texto é a versão revista do texto publicado em Cadernos de Literatura do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra, Nº 19, 1984, p. 39-44.
[1] BLOOM, Harold, The Anxiety of Influence. New York, 1973 (as indicações de página no ensaio referem-se a esta edição, a tradução das citações é minha).
[2] BLOOM, Harold, A Map of Misreading. New York, 1975 (as indicações de página no ensaio referem-se a esta edição, a tradução das citações é minha).
[3] ESCARPIT, Robert, “’Creative Treason’ as a Key to Literature”. In: Yearbook of Comparative and General Literature, Bloomington, nº 10, 1961.
[4] ESCARPIT, Robert, Le littéraire et le social. Paris. 1970, p. 28.
[5] BARTHES, ROLAND, Critique et vérité. Paris, 1970, p. 50: “A variedade dos sentidos não revela uma visão relativista sobre os costumes humanos; ela designa, não uma predisposição da sociedade para o erro, mas sim uma disposição da obra para a abertura; a obra detém, ao mesmo tempo, vários sentidos, por estrutura, não por defeito daqueles que a lêem”.
[6] ECO, Umberto, Opera aperta. Forma e indeterminazione nelle poetiche contemporanee. Milano, 1962.
[7] INGARDEN, Roman, Das literarische Kunstwerk. Halle (Saale), 1931, p. 361 (tradução portuguesa com o título A obra de arte literária. Lisboa, 21979).
[8] Id. ibid., cap. 13, “Das ‘Leben’ des literarischen Werkes”, p. 342-389. INGARDEN escreve, por exemplo, „que se devem contrapor à própria obra as suas concretizações, que dela se distinguem em muitos aspectos” (“daß dem Werke selbst seine Konkretisationen entgegenzusetzen sind, die sich in mancher Hinsicht von ihm unterscheiden”, p. 342).
Retomo hoje aqui um post de 15 de Outubro de 2011 do meu blogue Comparatista e Detective.
Sem comentários:
Enviar um comentário