Matisse em Baltimore, IV - The Matisse Stories de A. S. Byatt
O último conto, "The Chinese Lobster", questiona o lugar de Matisse num mundo pós-moderno. A discussão gira à volta de questões de género - a representação do corpo feminino e a perspectiva feminina nos seus quadros. Gerda Himmelblau, Directora dos Estudos Feministas, almoça com o professor Peregrine Diss para conversarem sobre a queixa de uma aluna, Peggi Nollett, sobre Diss. Peggi quer escrever uma dissertação sobre "Matisse e o corpo feminino", e não se sente compreendida por Diss, além de que o acusa de assédio sexual. A perspectiva dela é ahistórica e de protesto, está interessada na distorção do corpo feminino na obra de Matisse e na imobilização da mulher, que ela relaciona com a representação de escravas e odaliscas na pintura. Peggi convidou Diss a ver o seu trabalho, no estúdio que lhe serve também de casa, e Diss descreve a Gerda as paredes forradas com cartazes de Matisse manchados com matéria orgânica, que parece ser sangue, ovos e tomate, e grandes suásticas desenhadas com fezes. Gerda argumenta que a arte recente contém elementos de protesto. Discutem a questão do assédio, e Gerda acredita que seja falsa, entre outras coisas, pela descrição de Peggi, feita por Diss, como muito pouco atraente - embora, reflicta ela, o assédio não seja uma questão de atracção, mas sim de afirmação de poder. Finalmente, interrogam-se sobre a razão que terá levado Peggi a escolher Matisse, se o detesta a tal ponto, justamente ela que é anoréctica, depressiva e tem tendências suicidas. Gerda explica que é exactamente essa a razão da escolha - Matisse pinta "luxe, calme et volupté" (título do quadro de Matisse reproduzido em cima). As críticas feministas não gostam do modo como Matisse "expande o erotismo masculino a panoramas plácidos de bem-estar" (MS, p. 116). Os marxistas, por outro lado, criticam a conhecida afirmação de Matisse de sonhar com uma arte feita de equilíbrio, pureza e serenidade, desprovida de qualquer assunto perturbador, uma arte que acalme, uma espécie de poltrona confortável que proporcione descanso. Diss considera esta declaração de Matisse mais provocadora que o trabalho de Peggi, Gerda argumenta tratar-se de uma visão muito limitada. Gerda decide transferir a orientação da tese de Peggi para um(a) professor(a) que seja mais sensível ao projecto dela, ahistórico e de protesto: "a sympathetic supervisor, who cares about political ideologies of that kind" (MS, 126).
Curiosamente, um dos autores que mais se ocupou de Matisse foi justamente um comunista, Louis Aragon. No texto "Apologie du Luxe", de 1946, Aragon refere-se ao ponto de partida de Matisse, os versos do poema de Baudelaire "Invitation au Voyage": "Luxe, calme et volupté". Aragon defende Matisse e diz que tudo depende daquilo que se entende por "luxo", que pode ser o "direito à preguiça" de Paul Lafargue (cf. o seu livro Le droit à la paresse, de 1887), ou talvez mais ainda aquilo que não tem preço. Em qualquer dos casos, se o que se entende por luxo é o contrário de trabalho, seria um crime aplicar o termo a Matisse, que durante 56 anos mais não fez do que trabalhar e criar. Aragon diz que Matisse trabalhava como respirava, quase sem tempo para dormir.
Crítica em relação a todas as personagens, A. S. Byatt deixa transparecer quão pouco exacto pode ser o "politicamente correcto". Interrogamo-nos, a partir do texto de Byatt, se a perspectiva de Diss não terá sido ultrapassada pelos tempos, e se a de Peggi - para além das características pouco originais e de grande agressividade evidentes no seu "artwork" - não será descontextualizada e superficial. Mas o texto de A. S. Byatt não fornece soluções. Apresenta as contradições da contemporaneidade e, num procedimento muito brechtiano, deixa que seja o leitor a tirar as suas próprias conclusões. O texto de Byatt pode ser entendido como catalisador para uma discussão sobre o que muda nos tempos que mudam sempre, e o que permanece.
A. S. Byatt afirma que desejaria escrever como Matisse pinta. É verdade que a autora escreve usando, tal como Matisse, aquilo a que poderíamos chamar uma paleta de cores muito vivas. Mas é difícil comparar o método de criação de autores/artistas que usam meios tão diferentes como a literatura e a pintura. A arte de Byatt é muito irónica e crítica, de uma ironia sempre impregnada de grande ternura pelas suas personagens, sempre muito humanas. As três personagens de "The Chinese Lobster", todas tão diferentes, em conflito entre si e consigo próprias, são irmanadas no final pela autora, já que todas elas lutam para se manterem vivas num mundo aparentemente sem sentido. Une-as um contacto mais ou menos directo com suicídio ou tentativa de suicídio nas suas vidas, e o sentido possível da existência, pelo menos para quem lê, parece ser a descoberta desse elo de ligação. A lagosta e os caranguejos, que parecem lutar também pela sobrevivência numa grande montra de vidro à entrada do restaurante chinês, têm no conto a função de metáfora da precária existência humana. As personagens de "The Chinese Lobster" estão tão isoladas e em situações aparentemente tão sem saída como esses animais - o que as distingue deles é só a consciência e o sempre difícil diálogo que a autora esboça entre elas. É interessante verificar que o "fiel da balança" em cada uma das situações de conflito dos três contos é sempre uma figura feminina - quer se trate de Susannah, Debbie ou Gerda, a perspectiva de A. S. Byatt é sempre, para além de irónica, humana e crítica, claramente feminista. O que Byatt mais partilha com Matisse será certamente o lado humano que observámos nas personagens que habitam estes contos, tão presente também no belo texto de Jazz do pintor, nomeadamente na secção dirigida aos jovens pintores.
Bibliografia:
- Aragon, Louis, Henri Matisse - a novel. NY: Harcourt Brace Jovanovich, 1979
- Byatt, A. S., The Matisse Stories. NY: Vintage Books, 1996 (no texto como MS, traduções minhas)
- Flam, Jack, Matisse in the Cone Collection: the poetics of vision. Baltimore, MD: Baltimore Museum of Art, 2001
- Gowing, Lawrence, Matisse. NY, Toronto: Oxford University Press, 1979
- Kelly, K. C., A. S. Byatt. NY: Twayne Publishers, 1996
- Matisse, Henri, Jazz. NY: George Braziller, 1992
Texto publicado na PNETliteratura a 3 de Julho de 2009
Retomo hoje aqui um post de 5 de Maio de 2011 do meu blogue Comparatista e Detective.
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